10.03.13 | 15:37
QUADRO A QUADRO, OU O CINEMA PAULATINO INDEPENDENTE
por Patrícia Lino
QUADRO A QUADRO, OU O CINEMA PAULATINO INDEPENDENTE
por Patrícia Lino
In my craft of sullen art
Exercised in the still night
When only moon rages
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I labor by singing light
Not for ambition or bred
Dylan Thomas
Exercised in the still night
When only moon rages
-----------------------
I labor by singing light
Not for ambition or bred
Dylan Thomas
Quadro primeiro: um homem num espaço interior. Quadro número dois: o mesmo homem cambaleia num jardim. Quadro número três: plano aproximado do rosto do homem. Quatro: plano aproximado do peito do homem. Há sangue na roupa. Quadro número cinco: a lente percorre o braço esquerdo do homem, e com ela duas certezas: o homem está sentado e o sangue desagua na sua mão. Quadro número seis: plano aproximado do chão onde o sangue cai. Quadro número sete: uma mulher segura uma taça com as duas mãos. Aproxima-se lentamente. Oito: a mulher coloca a taça debaixo da mão do homem. Nove: o sangue cai na taça. Quadro número dez: plano aproximado do rosto da mulher. Onze: plano geral do corpo do homem. O corpo tombou sobre o banco no sentido do sangue. No sentido do coração. Quadro número doze: a mulher pega na taça. Treze: outro homem aparece. Fuma. Quadros seguintes: a mulher bebe o sangue a partir da taça. Giro com ela até que escurece. Eis que escuto de repente a composição de Tom Zé, numa voz feminina, «O amor é um rock», mas são, na verdade, os versos de Carlos Drummond de Andrade que recordo: «os desiludidos do amor/ estão desfechando tiros no peito./ Do meu quarto ouço a fuzilaria./ As amadas torcem-se de gozo./ Oh quanta matéria para os jornais.»
«Do Amor», curta-metragem de Rodolfo Mendonça, integra o conjunto de trabalhos disponibilizados até agora pelo Quadro a Quadro, coletivo independente de cinema de Belém do Pará (Brasil), formado pelo próprio Rodolfo e ainda por Cássio França, Marcelo Tavares, Rafael Samora, Raquel Minervino, Tiago Freitas e Vince Souza. O Quadro a Quadro conta também com a participação de outros membros, amigos dos integrantes, e quase todos eles, desde dos fundadores até aos que se voluntariam para ajudar, têm formação em cinema, teatro e música. Para lá «Do Amor», são apenas duas as curtas-metragens online na página oficial do grupo: «EntrePortas» de Rafael Samora e «Em» de Raquel Minervino que parte, aliás, do poema «Tempo» de Max Martins (vide artigo na modo de usar & co., 2009):
o tempo
em nós
separando o tempo
em nós
o pão separando o tempo
em nós
corta o pão separando o tempo
em nós
a faca
Bastam, porém, para que, com entusiasmo, aguardemos as curtas-metragens seguintes. Há que passar, aliás, por cada uma delas para compreender, no fim, o diálogo que o Quadro a Quadro procurou estabelecer entre já calculadas dez peças. E, além de partilhar gratuitamente os resultados com o público, à semelhança dos muitos grupos que se reúnem com o mesmo intuito, os membros do Quadro a Quadro encaram estes pequenos exercícios como uma preparação para uma possível longa-metragem.
A
expressão com que abro o texto, «cinema paulatino», não só é
eficaz pela clara referência aos vinte e quatro frames por segundo,
«quadro a quadro», mas também porque pretende lembrar-nos do
esforço com que, sem qualquer tipo de apoio financeiro, um grupo de
estudantes se junta para fazer cinema. Coletivos como o Quadro a
Quadro, além de não gozarem o privilégio geográfico (claro está
que me refiro com bastante objetividade ao desequilíbrio que, até
em termos de visibilidade, existe entre estados como o Pará e
grandes metrópoles como o Rio de Janeiro e São Paulo), optam, no
âmbito do fortalecimento de um cinema que não vai ao encontro do
gosto das massas, por concentrar as suas atenções em trabalhos
como, por exemplo, um documentário ficcional, ainda integrado no círculo
das mencionadas dez curtas-metragens, sobre a cidade de Belém.
Destacam-se também projetos como «ILHA», longa-metragem de Mateus Moura que, além de contar com a participação de Rodolfo Mendonça (direção de fotografia e montagem), foi, quase na íntegra, filmada na ilha de Cotijuba – lugar onde, aliás, a curta «Entre Portas» foi também realizada – e não se distingue igualmente por qualquer tipo de apoio financeiro. Tratam-se, pois, de dois movimentos contrários à maré: o primeiro, exclusivamente cinematográfico, é, como lhe chamei, além de paulatino, independente; e o segundo, exclusivamente geográfico, tem, como ainda não escrevi, a importância das coisas, por norma, ignoradas. Isto é, as mais urgentes.
Existem em Belém do Pará, para além do Quadro a Quadro, outros coletivos como qUALQUER qUOLETIVO, do qual escolho partilhar «Bernardo Saiam no Phortal da Amazônia» que, além de inverter o emblemático título de Júlio Bressane, Matou a família e foi ao cinema (1969), para Matou o cinema e foi a família, é uma crítica acesa à desflorestação na Amazónia, CêsBixo Coletivo, Cinema & Miritismo, Tralhoto, do qual destaco «Um pacote de camisinhas jaz embaixo da cama» de Letícia Luzia, Ver-o-Take e Garfo e Faca.
qUALQUER qUOLETIVO
2012
2012
Tralhoto
2012
